quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O cônego - por Heitor

 “Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem...
As mandrágoras deram o seu cheiro.
Temos às nossas portas toda casta de pombos...”



A lua, em sua mais bela exibição, tinha sua luz refletida nas ondas do mar selvagem e excitante. Em um mausoléu afastado encontrava-se Heitor, recostado em sua janela espaçosa. Seus olhos, tão azuis quanto o reflexo da lua, completamente detidos em sua leitura: O cônego ou metafísica do estilo, de Machado de Assis. Suas mãos apertavam firmemente o papel, sua imaginação voava. A cada nova palavra, uma nova descoberta. Lia e relia... Sua concentração era tão intensa, que, por vezes, conseguia ouvir suas engrenagens cerebrais trabalharem em interpretações diversas. Divagava entre as palavras à sua frente e as diversas outras leituras que antecederam a mesma. Por um momento chegara a imaginar o que viria a seguir, mas logo voltava à atenção ao texto presente.

Parou, releu, raciocinou. Sua mente já trabalhava a frente, ou atrás, fazendo associações. Pelo canto de seus lábios róseos começou a surgir um sorriso. Lembrava--se vagamente de outro texto que lera pouco tempo atrás: “teorias e alegorias da interpretação no Theatrum de Michel Focault”, por Khalil. As sombras que cercavam sua imagem solitária pareciam modelar-se na escuridão, formando uma citação do texto lido: “O princípio da interpretação nada mais é do que o intérprete.” Através de sua janela o menino observou as copas das árvores bailarem formando uma nova citação. Dessa vez, de Paulo Freire: “Ler é reescrever o que estamos lendo. É descobrir a conexão entre o texto e o contexto do texto.”

Tomado pela surpresa, Heitor deu-se conta que era exatamente isso que fazia naquele exato momento. Por um instante, sua mente desprendeu-se das palavras de Machado, passando a divagar sobre as interpretações. Ora, se lhe era permitido associar o conto machadiano a teses interpretativas, não seria isso uma confirmação das teses interpretativas? Sim, seria! Mas, sem mais delongas, a atenção do nosso personagem voltou-se para a leitura decorrente. O sorriso voltou a brilhar em seus lábios ao reler sobre a tese criada por Machado. Em sua mente surgiam desenhos de um cérebro repartindo-se em diferentes pólos. As palavras penetravam sua mente e logo seu próprio cérebro começava a trabalhar, criando imagens de palavras que se entrelaçavam, casavam e até mesmo tinham filhos.

Mas, vamos com calma, (antes que o nosso personagem volte do mundo da lua), ou, seria do mundo das procriações? Explicar-lhe-ei a tese machadiana do “idílio-psíquico”. Os substantivos nascem do hemisfério direito do nosso cérebro, enquanto os adjetivos nascem do hemisfério esquerdo. Isso acontece devido ao fato das palavras serem divididas por sexo. Isso mesmo, por sexo! Mas por favor, caro leitor, não comece a imaginá-los tendo filhos. No entanto, vale ressaltar que sim! Elas amam umas as outras e encontram-se formando um casal.

Passada as devidas explicações, voltemos para o pequeno de olhos brilhantes que já avançava em suas leituras, iniciando um novo tour de divagações. Voltado para a lua, Heitor, passou a estudar insistentemente as formas de seus reflexos nas ondas desejosas. Embora, seu corpo estivesse voltado para tal cena, sua mente preocupava-se em analisar mais profundamente as palavras que já começavam a ser absorvidas.  - confesso que não.  - a sutileza machadiana pegara o menino de surpresa, e quando vira já estava falando com o texto. Pronto!!! A relação entre narrador e leitor estava estabelecida. Mas Heitor não estava satisfeito. Ele Queria saber mais, queria entender como era possível o texto comunicar-se com seu leitor. A resposta emaranhou-se por suas veias cerebrais e, mais uma vez, as sombras pareceram tomar formas, fazendo associar aquele momento com o texto de Khalil: “O discurso veicula e produz o poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo”. Ora, se o discurso está relacionado ao poder, obviamente seus autores geram formas de manipulá-lo, visto que a interpretação depende inteiramente de seu intérprete. Tendo isso em mente, poderíamos dizer que ao produzir um texto, o autor delimita um determinado número de interpretações possíveis.

Ainda atordoado pela quantidade de informações despejadas em sua mente, Heitor titubeou, pensou em desistir. Mas sua curiosidade já havia sido aguçada e agora só lhe restava concentrar-se e concluir a leitura. Logo, a mente do menino voltava a divagar e uma nova cena ganhava espaço em sua imaginação. De um lado, um substantivo ganhava braços, pernas e é claro, boca. Do outro, um adjetivo ganhava os mesmos atributos, porém com algo a mais: um vestido. O substantivo já não era substantivo e sim Silvio. O adjetivo, por outro lado, virou Silvia. E assim, ambos, Silvio e Silvia, bailavam a procura um do outro. O barulho os atormentava, tornando sua comunicação quase impossível. De repente. O silêncio. Silvio avistou Silvia, e, esta, correu em sua direção. Juntos, bailaram através dos olhos de Heitor, que já começava a balançar a cabeça, agitando seus fios avermelhados, tamanha a confusão.

E o cônego? Perguntava-se Heitor ao final da leitura mirando seu título curiosamente. Repassou, mentalmente, todos os momentos do conto. O cônego estava escrevendo, foi interrompido para fazer um discurso e... Silvio e Silvia dominaram a cena. Como se uma luz se acendesse em sua mente ele percebeu o que agora lhe parecia óbvio. O cônego não passava de uma artimanha utilizada por machado para que pudesse lançar as bases de sua nova psicologia. Mas vamos com calma! Se Machado utilizou-se de um escritor enquanto este escrevia, para falar do processo de escrita, isso não seria metalinguagem? Obviamente, meu caro leitor. Eis a magia do texto machadiano.